Do Tratado de Santa Luzia

Em 13 de dezembro de 1630, foi assinado pela Coroa lusitana e a Santa Sé o Tratado de Santa Luzia, que recebeu esse nome por ter sido realizado no dia dedicado a Santa Lúcia de Siracusa. O seu texto proíbe a escravização dos nativos da Terra de Santa Cruz. Mas isso já não era novidade na época, pois a proibição existia desde o século anterior. Porém, ao contrário do que ocorria nas colônias castelhanas, tal ordenação havia sido completamente ignorada pelos colonos lusitanos.

A proibição anterior abria uma exceção, a Guerra Justa. Em caso de uma guerra legítima contra os nativos, que poderia ocorrer por recusa à conversão, impedimento à propagação da fé cristã, hostilidades contra colonos ou quebra de pactos celebrados, os Lusitanos poderiam escravizar os prisioneiros resultantes da lide. Só aqueles que aceitavam a autoridade da Coroa tinham a liberdade garantida e o status de aliados. Ainda assim, tinham de se manter nos aldeamentos próximos às vilas e contribuir para a defesa da colônia.

Esses aldeamentos tiveram início após a feroz guerra contra os Tupinambá, que haviam lutado ao lado dos Francos em meados do século XVI. Uma vez aldeados, os nativos poderiam ser facilmente catequizados pelos Jesuítas e controlados pelas autoridades coloniais.

Apesar de serem considerados oficialmente livres, não podiam migrar para outro lugar sem autorização e deviam trabalhar sazonalmente para os colonos. Além disso, prestavam obediência aos Jesuítas, os responsáveis por sua formação espiritual e por evitar que os colonos explorassem esse trabalho comunal além do necessário. Esse trabalho é realizado por tempo limitado e mediante pagamento.

A principal diferença entre o serviço sazonal e a escravidão é que o nativo não é mais propriedade do colono. Ele não pode ser vendido, não pode ser trocado, separado da família contra a sua vontade, avaliado ou sequestrado como bem pela justiça.

O passo seguinte dos colonos foi entrar continente adentro para “descer” povos inteiros para os aldeamentos, seja por convencimento ou por coação. Essas expedições eram lideradas por missionários que tentavam convencer os nativos de que a vida nas aldeias religiosas garantia a proteção e bem-estar deles. O não deixava de ser verdade. Só que se tratava de proteção contra os próprios colonos, que costumavam invocar o direito de guerra justa para escravizar os nativos.

Os nativos não eram ingênuos. Eles tinham consciência que estavam abrindo mão de parte sua liberdade e modo de vida. Mas a eles também interessava usar a aliança com os Lusitanos em proveito próprio, contra seus inimigos históricos.

Os descimentos ocorreram principalmente nas capitanias de São Sebastião e do Cabo Frio, com a finalidade principal de ocupar o mais rapidamente possível o território, a fim de evitar novas invasões de Francos e prevenir incursões de Neerlandeses no sul.

A Coroa pretendia de fato integrar os nativos à sociedade, e não dizimá-los. Acreditavam que, por esse sistema, apresentariam os nativos a uma forma superior de civilização. Além disso, era prudente que os nativos já convertidos não tivessem muito contato com aqueles que permaneciam pagãos, buscando o máximo contato possível com outros cristãos. Ao mesmo tempo, a Coroa temia a formação de uma consciência nativista que pudesse se voltar contra os Lusitanos.

Os aldeamentos, entretanto, provocaram efeitos colaterais inesperados. Com o convívio mais próximo com as vilas coloniais e habitando um espaço mais reduzido, os nativos se viram ainda mais vulneráveis às doenças desconhecidas trazidas por brancos e negros. Muitos nativos sobreviventes acabaram fugindo de volta para as matas e, assim, ajudando a espalhar a peste.

Os Jesuítas entendiam que o trabalho nativo era importante para fixação dos colonos na província, pois a pequena Lusitânia não tinha mão de obra suficiente para dar conta de terras tão vastas, mas sempre acreditaram que esse não era o papel principal a ser desempenhado por eles. Este seria a ampliação da fé católica. Mesmo defendendo ideias semelhantes, as demais ordens, lideradas pelos Franciscanos, estranhavam a ênfase obsessiva dos Jesuítas em aumentar a quantidade de fiéis, e passaram a acusá-los de quererem explorar os nativos em proveito próprio em suas fazendas.

Abusos e cativos irregulares ocorriam em todos os cantos da colônia. Nas capitanias reais, como São Sebastião, havia maior fiscalização dos governadores, mais ligados aos interesses da Coroa. Porém, nas minas de Rosário de Paranaguá e em Piratininga, a resistência continuou forte. Houve muitos conflitos entre bandeirantes e padres, inclusive assassinatos.

Assim, coube praticamente aos Jesuítas dirigir uma feroz campanha contra a escravização nativa. Conquistando o apoio do Papa, o Tratado de Santa Luzia foi firmado trazendo como novidade o fim das guerras justas. Além disso, o Governo-Geral ficou obrigado a agir severamente diante da denúncia de qualquer membro da Companhia de Jesus.

A obediência ao tratado não aconteceu da noite pro dia, levando quase vinte anos para vigorar plenamente. Como consequência desse embate, em 1640 os Jesuítas foram expulsos de Piratininga, com a omissão das demais ordens, e só retornaram uma década depois. Ainda assim, nas vilas e arraias mais distantes, carecia de fiscalização. Muitas vezes, a diferença entre o trabalho servil e o trabalho forçado é bastante tênue, sendo difícil a formalização de uma denúncia e a sua comprovação. Porém, o cerco foi se fechando para os transgressores uma vez que o Papa exortou as demais ordens a defenderem o cumprimento do Tratado.

À medida que foram escasseando as entradas de apresamento clandestinas, aumentaram as expedições exploratórias e de busca por metais preciosos. Os nativos passaram, então, a serem usados no desbravamento do sertão e achamento das minas. Eles são mateiros excepcionais: quebram galhos e marcam árvores, reconhecem a aguada pela cor do terreno, navegam os rios habilmente, encontram alimentos em qualquer parte. Na caça, imitam o pio dos pássaros, sabem dizer o tamanho, sexo e distância do animal perseguido. Além de povoarem o território a favor dos Lusitanos, são os responsáveis por abrir caminhos, a maioria aproveitados dos antigos Peabiru, cuidando de sua conservação, da feitura de raras pontes e da construção de fortalezas. Ajudam também a construir os reservatórios de água, levantar arraiais, construir e reparar igrejas. E são os Tupiniquim os primeiros mineiros nos Campos dos Cataguás.

A escassez de trabalhadores negros no sul da colônia ainda garante a importância dos nativos e mestiços na sociedade bandeirante. Afinal, os próprios colonos piratininganos são fruto de quase dois séculos de mestiçagem, desde os tempos dos degredados Bacharel e João Ramalho. Entretanto, o mesmo já não ocorre em São Sebastião e litoral acima, onde os escravos negros tomaram completamente os campos e a presença nativa nas vilas vai se escasseando. Sem ter a mesma utilidade de outrora, a pouca adaptação dos nativos ao cotidiano urbano acaba se tornando um transtorno, seja perambulando pelas ruas ou ocupando o espaço em torno delas. Espaço este cada vez mais disputado e cobiçado a partir do crescimento provocado pela riqueza que começa a chegar das minas. As aldeias vão migrando cada vez mais para o interior.

Published in: on 11 de janeiro de 2019 at 0:32  Deixe um comentário