DOS ANIMAIS FANTÁSTICOS
Cavalo de Três Pés
Habitat: tem sido avistado nas estradas das capitanias de São Vicente e Itanhaém.
O Cavalo de Três Pés é um animal assombroso que apavora os viajantes nas estradas desertas. Como o nome já diz, possui apenas três pés, sendo a pata ausente a dianteira. O animal deixa no barro três pegadas fundas, e quem por infelicidade pisar nelas enfrentará desventuras em série.
Mas esta é a mais banal de suas peculiaridades. Esta criatura fantástica não tem cabeça e possui asas. Aparece sempre à noite, voando ou correndo, dando coices em quem encontrar pela frente.
Considerações adicionais: a criatura é hostil, mas não maligna. Atacará sempre quem encontrar, mas não tem nenhum alvo ou objetivo determinado. A fama para quem achar e capturar uma criatura tão única pode valer o desafio.
Gafanhotão
Habitat: ocorrência relatada nos Campos de Piratininga.
O Gafanhotão tem o tamanho de um boi e costuma aparecer na madrugada de sábado pra domingo nas curvas das estradas. Pega o viajante de surpresa e o derruba no chão, colocando todo o seu peso em cima para paralisá-lo enquanto chupa o seu sangue, preferencialmente pela nunca. Mas a criatura não ataca para matar, apenas para se alimentar. Ao se sentir satisfeita, deixará a vítima no estado em que estiver e partirá.
Considerações adicionais: o Gafanhotão geralmente ataca sozinho e à noite. Portanto, dificilmente atacará quem não viaje sozinho. Por essa razão mesmo, um grupo contratado para for fim no terror que o animal tem provocado na vizinhança terá dificuldades em encontrá-lo. Como pouco se sabe sobre a natureza e os hábitos dessa bizarra criatura, nada impede que ela surja de surpresa em meio a uma praga de gafanhotos.
Mão Pelada
Habitat: avistado com preocupante frequência nos cerrados e campos da região mineira.
O Mão Pelada possui uma faixa de pelos negros em volta dos olhos, o resto do corpo coberto por tons avermelhados, e uma das mãos é ligeiramente encolhida e inteiramente desprovida de pelos, o que dá à criatura o nome com o qual é conhecida. É do porte de um bezerro novo, o que não parece representar perigo a quem com ele cruza pela primeira vez. Entretanto, nenhum animal, por mais valente que seja, atreve-se a entrar na área onde seu grunhido se faça ouvir.
Já o viajante descuidado, ao atravessar o seu caminho, cometerá um grande erro se cruzar seus olhos com os desse pequenino animal. Olhos fascinantes e misteriosos, que em breve faíscam uma luz azulada. Atraído pelo fascínio desse olhar, o viajante se queda paralisado. A vítima precisa reunir forças para escapar dessa fascinação, pois, no momento em que estiver para atacar, o Mão Pelada cresce para o tamanho de um urso e rasga sua presa com suas enormes patas e unhas afiadas.
Seria loucura querer enfrentar um animal tão perigoso, mas muitos o fazem. Acontece do Mão Pelada ter grande valor comercial para os caçadores. Sua banha é um eficiente remédio para muitos males, particularmente aqueles que provocam dores nos músculos e articulações. E, de quebra, o caçador poderá lucrar com cima vistosa pele e carne saborosa.
Mas caçar o Mão Pelada é tarefa tão difícil quanto resistir ao seu olhar. Primeiro, porque os cachorros não o perseguem, tamanho medo que sentem da criatura. E mesmo os melhores e mais ferozes cães de caças sucumbem facilmente ante seu olhar. A criatura atrai o caçador ardilosamente até o seu esconderijo, onde o ataca na forma de urso.
Considerações adicionais: o Mão Pelada é um predador nato. Ataca qualquer um que encontrar. Bastante esperto, evitará grupos, contra os quais o poder imobilizador de seu olhar terá pouca efetividade. Em situação desvantagem, procura dispersar o grupo fazendo sons e gemidos na floresta.
Mboi-Tatá
Habitat: a criatura é vista nos campos, geralmente próxima a alguma fonte d’àgua, seja rio, pântano ou mar.
O primeiro a registrar sua ocorrência foi o Padre Anchieta, que avistou um facho cintilante que deixava um rastro luminoso, um fogo vivo. Chamou-o na época de Mbai-Tatá, a coisa de fogo, pois não soube precisar sua origem e natureza.
Hoje já sabemos tratar-se do Mboi-Tatá, a temível cobra de fogo que protege as relvas naturais e é impiedosa com os incendiários. Aprendemos com os nativos as técnicas das queimadas para limpar o terreno para o plantio. Não fomos alertados, contudo, do terrível perigo dessa prática: provocar a ira de Mboi-Tatá.
Muitos caçadores acreditam que a criatura habita cavernas incrustradas nas pedras e ravinas, mas a versão de que ela habita as águas, a despeito de sua natureza ígnea, parece ser mais acertada.
De hábitos noturnos, não há muita precisão nas descrições de suas formas, exceto no que diz respeito à forma de serpente e o ataque feito com cusparadas incineradoras. Entretanto, uma discrepância salta ao olhos. Uns o descrevem como uma pequena serpente de fogo capaz de se erguer do chão em pequenos voos. Outros o descrevem como uma gigantesca serpente, cinco a sete vezes maior que uma Jiboia. Seria o Mboi-Tatá um ser que nasce e cresce como qualquer outro animal?
Considerações adicionais: o Mboi-Tatá é uma criatura essencialmente punitiva. Ela não vai surgir do nada para atacar vilas e viajantes. Seu propósito será sempre a defesa dos campos. Atacará até julgar que não há mais ameaça imediata a ser contida.
Mboiguaçu
Habitat: a criatura só foi avistada ao sul da capitania de Rosário de Paranaguá, próximo ao litoral. Supõe-se ser uma criatura local, mas a região mais para o sul e para o interior ainda é pouco explorada.
A lenda ouvida entre os Cariós fala de uma serpente que abria muito os olhos para melhor enxergar e que, para isso, havia devorado milhares de olhos. De tantos olhos que ingeriu, tornou-se brilhante pela multidão de pupilas que guardava. Seu olhos viraram duas bolas de chama, um clarão vivo.
De fato, o Mboiguaçu que conhecemos é serpente de olhos que assemelham a dois faróis. Seu couro é transparente e que cintila sob a luz do luar, quando aparece deslizando nas campinas, nas beiras dos rios. Mirar a criatura pode deixar a pessoa cega, louca ou até matar.
Aqueles que sobreviveram ao encontro acreditam que escaparam por terem ficado imóveis, sem respirar, e com os olhos bem fechados. Pode ser. Por outro lado, talvez a criatura seja sensível ao cheiro do medo.
Considerações adicionais: o Mboiguaçu muito lembra o Mboi-Tatá, mas suas ações não indicam nenhuma missão punitiva ou mesmo de hostilidade, e tampouco parece ser capaz de cuspir labaredas ou bolas de chamas. É uma criatura bastante arredia ao contato. A única coisa que parece atraí-la é a luz do luar. Sua pele única atiça a cobiça dos caçadores.
Terepomonga
Habitat: pode ser encontrada no litoral da Província de Santa Cruz.
Terepomonga é uma cobra marinha, à primeira vista igual a todas as outras. Porém, qualquer coisa viva que tocar em seu corpo permanece fortemente apegada, e não há nada que possa tirar. E é assim que a Terepomonga se alimenta. O que também não chega a ser extraordinário.
Ocorre que às vezes ela serpenteia para fora do mar e fica muito pequena. Aparenta ser tão vulnerável que a atacam e pegam, mas ficam com a mão presa. E, se tentam tirar com a outra mão, esta fica presa também. E aí o mais fantástico acontece: a Terepomonga volta a crescer e leva a pessoa para o mar e a come.
Considerações adicionais: nunca encoste numa Terepomonga. A única forma de se livrar dela é cortando aparte do animal que está grudada na pessoa ou o inverso.
DAS CRIATURAS FANTÁSTICAS
Aca Peré
Habitat: pode ser encontrado em qualquer trilha ou caminho nas terras de fronteira indefinida entre as províncias do Guayrá e do Rio da Prata e as terras lusitanas.
O Aca Peré aborda o viajante na forma de um velho nativo, possivelmente de origem guarani. Ele ostenta na cabeça uma faixa que lhe cobre uma ferida profunda e incurável. Difícil dizer a dor e aflição que aparenta sofrer é real ou fingida. Qualquer que seja a verdade, quando o viajante estiver distraído, Aca Peré removerá a faixa e, de sua ferida, surgirá uma nuvem de gusanos e moscardos.
Diferentemente dos vermes e moscas encontrados na natureza, esses se revelarão venenosos. Suas mordidas infligirão dores e agonias na vitima, enquanto Aca Peré aproveita-se para levar todos os pertences do viajante. Segundo relatos, a força vital dessas pequenas criaturas está estranhamente vinculada a do velho nativo.
Comentários adicionais: Aca Peré é uma criatura oportunista e traiçoeira, não um monstro assassino. Sentindo-se em desvantagem, partirá. Se morrer, os insetos morrem.
Bradador
Habitat: o evento já foi registrado em diversas regiões, desde os Campos dos Cataguás até o Rio da Prata, sempre em campos e florestas.
O Bradado é mais uma ocorrência do que propriamente um bicho, pois ninguém ainda viu, só ouviu. E muito! O bicho é danado de barulhento. Emite berros reiterados, desesperados, descompassados e intermitentes, que oscilam entre o alarido e o lamento, capazes de provocar da irritação ao horror.
A descrição a seguir segue o relato perturbador de um caraí dos Tavyterã. Muito explica a razão de nunca alguém ter avistado um Bradador. E, mesmo se tivesses, não teria acreditado no que viu ou sequer compreendido o ocorrido.
O que chamamos de Bradador é um pequeno ser escuro no qual só se distingue uma boca, capaz de tragar o que encontrar pela frente. Raramente é visto, nunca em detalhe. O Berrador não devora ninguém, pois nem tem estrutura corporal para isso. Trata-se, na verdade, de um portal vivo para o plano astral, para o qual a pessoa é levada fisicamente. Para esse pequeno orifício, tudo o que se encontra no caminho é sugado. A única defesa possível é desviar-se.
Sobre como escapar desse plano astral, uma vez tragado pelo Berrador, o caraí preferiu calar-se.
Considerações adicionais: ser tragado pelo Bradador pode ser um grande percalço durante uma campanha ou a própria razão de aventurara-se mata adentro: resgatar alguém que foi sugado pelo Berrador. A única forma de trazer a pessoa de volta seria encontrar outro portal físico entre os planos.
Caipora
Habitat: campos e florestas da Província de Santa Cruz. Raramente é visto na Grande Floresta.
Muita confusão se dá quando se fala dessa criatura. Uma das razões é sua semelhança com o Curupira, mas com os pés normais. A outra é que Caipora pode ser macho ou fêmea, cada qual com suas peculiaridades. O nome Caipora, ou Caa-Porá, significa habitante do mato.
O Caipora percorre as matas protegendo os animais de pequeno porte, particularmente os porcos do mato. Nada do que acontece em seu território lhe escapa. Normalmente surge montado em um enorme queixada, brandindo um cajado e comandando uma manada de queixadas.
Seu cajado, feito de Japecanga, permite-lhe resistir a qualquer ataque mágico de influência e ressuscitar animal morto sem sua permissão, desde que ainda não tenha sido apanhado pelo caçador. Japecanga é um cipó flexível, cheio de nozinhos e espinhos, que vegeta às margens dos rios e em lugares frescos.
Além dos pés normais, uma característica comum a todos os Caiporas é o gosto pelo fumo. Seu cachimbo é feito com um crânio e tíbia humanos. Tem por hábito devorar suas vítimas, só descartando os intestinos, que ficam jogados no chão.
O Caipora macho costuma ser descrito como um caboclo baixo, hercúleo, ágil e nu. Mas também pode ser um homenzarrão coberto de pelos negros por todo o corpo e a cara, como já foi visto no sul. Ou ainda uma criatura monstruosa e peluda, de aparência humana, cabeleira áspera, cabeça grande, olhos em brasa e dentes enormes. Todas essas versões montam sempre um queixada de grandes dimensões.
A Caipora fêmea é descrita como uma nativa retaca e forte, peluda, de farta cabelereira com a qual açoita gente e animais. Tem por hábito negociar caça por fumo e cachaça. Estabelece relações amorosas com os homens que lhe agradam, mas é extremamente ciumenta. Se o homem decidir casar-se com outra, persegue-o e o açoita até a morte com o cajado. Para fugir de sua ira, só abandonando a região.
Considerações adicionais: além dos queixadas, o Caipora poderá solicitar a ajuda de outros animais da mata. O ataque do Caipora é mais direto e violento que o do Curupira. A negociação com o fumo deve ser realizada antes da caça. Depois que o caçador cometer algum ato interpretado com prejudicial, a ira do Caipora será incontornável.
Cuarajhy-Yara
Habitat: serras e florestas nas terras de fronteira indefinida entre as províncias do Guayrá e do Rio da Prata e as terras lusitanas.
Os Guaranis descrevem o Cuarajhy-Yara como um homem alto, branco, de cabelos vermelhos e de certa idade. Seus pés, envoltos em plumas, ocultam seus passos e a direção da marcha, sempre silenciosa, sem emitir ruídos. No meio da testa ostenta um olho de fogo; seus dentes são como presas bestiais; seus braços cumpridos e as mãos muito grandes. Sua força é descomunal, imbatível.
Há quem o descreva também como um homem peludo, que veste um sombrero de palha e carrega um bastão. Em vez de falar, emite o canto dos pássaros. Possui a propriedade da invisibilidade, mas, neste estado, torna-se também intangível.
Os nativos se referem a ele como o Senhor do Sol, talvez pelos olhos de fogo, de onde saem chamas como as do sol, e o hábito de aparecer no início da tarde. Seu principal objetivo é proteger as aves da floresta. Como punição ao caçador imprudente, segura a vítima com suas mãos poderosas e derrama sobre ele o seu olhar de fogo. Com suas presas, é capaz também de rasgar seu pescoço, mas só o fará em caso de incômoda resistência. É com seu olhar de fogo que pretende purificar o agressor da natureza.
Considerações adicionais: na mão, o Cuarajhy-Yara é imbatível. Caso necessite lutar, não o fará com intenção de matar, embora isso possa ser inevitável. Seu objetivo é essencialmente punitivo, de purificação ante seu olhar.
Curupira
Habitat: florestas da Terra de Santa Cruz.
Curupira é uma criatura que tem como função principal proteger as florestas. Todo aquele que derruba ou estraga inutilmente as árvores é punido por ele. Dependendo da região ou da ausência de outras criaturas protetivas, o Curupira pode também as dores de animais injustamente mortos ou caçados.
Portanto, o Curupira não escolhe inimigos; são estes que, com suas ações, escolhem a inimizade dele, sejam brancos, negros ou nativos. Os nativos têm como prática oferecer fumo e outras prendas para que o Curupira não lhes faça mal, sem a certeza de serem atendidos.
Por vezes, o Curupira pode tomar a iniciativa de abordar o caçador e pedir algo em troca de sua permissão. Pode também oferecer armas infalíveis em troca de alimentos sem pimenta ou alho, exigindo segredo absoluto sobre o acordo.
O castigo mais comum do Curupira é fazer a pessoa errar por muitos dias pela mata, sem achar o caminho de casa, ou sem conseguir chegar aos seus. Não se trata de criar ilusões que façam o caçador ou viajante se perder, mas de uma magia que provoca a desorientação. Assim, os caçadores desaparecerem, esquecem o caminho, sofrem pavores súbitos. Tal abandono pode equivaler à morte ou à fome agonizante.
Como arma, o Curupira possui uma lança e arco e flecha. Há lugares em que foi visto com um machado feito de casco de jabuti. Mas o que utiliza mesmo é uma variedade de encantos. Suspeita-se que possa controlar animais e as plantas, entrar em comunhão com a floresta, e se transformar em diversos animais. Também tem a habilidade de desaparecer na floresta. Além do já mencionado encanto da desorientação.
Descrever essa criatura pode ser uma tarefa tão difícil quanto escapar ileso de sua ira. O normal é descrevê-lo como um homem com o corpo coberto de cabelos vermelhos e os pés virados para trás.
Entretanto, conforme a região, as variações físicas são incontáveis: pode ser todo peludo ou ter a cabeça pelada; ser do tamanho de uma criança ou agigantado; ter as penas sem articulações, apenas um olho, dentes azuis ou orelhas grandes. A única referência imutável são os pés virados ao avesso.
O nome também muda. Nas selvas de Nova Castela, chama-se Chudiachaque. Em Nova Granada pode ser o Máguare. Na Grande Floresta já foi chamado de Pocai e Iuirocô.
Considerações adicionais: a relação do Curupira com o viajante varia de acordo com a atitude deste com a floresta e com os animais que nela habita. Assim sendo, é raro o Curupira tomar a iniciativa de oferecer ajuda, exceto quando pretende obter algo em troca. Apesar dos relatos de caçadores que conseguiram favores em troca de fumo e alimentos, é pouco provável que um ser tão poderoso realmente precise recorrer a esse escambo para obtê-los. Mais provável que o faça para testar a índole do caçador e sua capacidade de manter a palavra. Quando decide atacar, dificilmente o faz diretamente, mas usando seus poderes mágicos para manter o controle da situação e impor sua punição.
Gorjala
Habitat: florestas da Província de Santa Cruz, especialmente aquelas que cobrem as serras penhascosas.
Há pouco a se falar do monstro Gorjala, pois poucos sobreviveram ao seu ataque. E, aqueles que o fizeram, estavam mais preocupados em fugir do que observar o seu aspecto. Sabe-se que é um gigante preto e feio, de grande ferocidade. Dizem que possui apenas um olho faiscante. Suas passadas são imensas, o que facilita sua locomoção pelas ravinas, escarpas e grotões. Mas há quem o descreva com apenas um pé e que as passadas, na verdade, são saltos. Após dominada a vítima, com vida ou não, mete-a embaixo do braço e vai comendo-a às dentadas com sua boca enorme.
Considerações adicionais: o Gorjala é uma criatura bestial que surge com o único propósito de matar. Sua resistência se mostra tão sobrenatural que não furtará em atacar um grupo de viajantes. Porém, dar-se-á por satisfeito ao conseguir sua presa, deixando os demais para uma posterior investida.
Iara
Habitat: rios e lagos das terras lusitanas.
A Iara é uma criatura intrigante. Semelhante à sereia europeia, é mulher da cintura pra cima e peixe da cintura pra baixo. É descrita como uma bela mulher de longos cabelos negros e olhos esverdeados. Mas há quem tenha ficado decepcionado com sua beleza. Como as sereias, a Iara atrai os homens com seu canto para sugar‑lhes o sangue ou arrastá‑los para o fundo do rio. Porém, alguns que resistiram a seus encantos não mencionam o canto, apenas a atração por sua beleza.
Descrevem-na como um ser que exala maldade, mas uma maldade extremamente sedutora, que provoca na vítima o desejo de se entregar a uma vida de gozo eterno no fundo das águas. Há quem afirme que ela tenha surgido como um moço para as mulheres, ao mesmo tempo em que os homens a viam como mulher.
Quem escapa da morte nos braços da Iara não escapa de seus encantos. Uma vez afetado por eles, mesmo que não se entregue de imediato, o desejo vai corroendo a pessoa, incutindo nela o ímpeto de atirar nas águas do rio e se deixar afogar em suas águas.
Sobre a Iara, há um elemento intrigante: os nativos parecem desconhecê-la. As poucas ocorrências envolvendo nativos são narradas como uma aterradora novidade. Os nativos de Santa Cruz se sentem mais desconcertados diante da Iara do que os colonos.
Considerações adicionais: se a Iara para de cantar para sugar o sangue de alguém, o encanto deve ser quebrado naquele instante, o que a tornaria vulnerável. Então devemos supor que ela primeiro puxa a vítima para o fundo das águas primeiro, vivo ou morto. Porém, aqueles que se viram livres de sua atração naquele instante sofrerão os efeitos colaterais já descritos.
Pitá-Yovái
Habitat: pode ser encontrado nas florestas de La Piñería ou nas terras de fronteira indefinida entre a Província do Guayrá e as terras lusitanas.
O Pitá-Yovái se assemelha a uma criança nativa, mas possui uma força incrível e natureza sanguinária. Seus pés são virados para trás como os do Curupira, mas não possui os dedos. Move-se com grande agilidade, pendurando-se nos cipós. Há quem diga que existe uma versão adulta.
Ataque a vítima de surpresa, pulando de cima das árvores, agarrando-a com sua força descomunal e a devorando como um peixe recém tirado das águas.
A única fraqueza dessa criatura parece ser o seu gosto pelo mel.
Considerações adicionais: o mel pode ser usado para atrai-lo a uma armadilha, mas poucos conhecem essa característica dele. Na verdade, além dos Guaranis e Guayanás, poucos o conhecem.
Saci
Habitat: sua ocorrência é registrada principalmente nas matas próximas a povoados e caminhos. Quanto mais ao sul da Província de Santa Cruz, mas frequente tem sido os encontros.
O Saci tem a forma de uma criança negra, de uma perna só, vestindo apenas uma carapuça vermelha e portando um cachimbo. Sua negritude, no entanto, é distinta daqueles trazidos do Continente Negro. É um preto lustroso, brilhante como piche, sem pelo no corpo e na cabeça. Seus olhos são vivos como os de uma cobra e vermelhos como os de um rato branco. Seus lábios também são salientes, de um vermelho vivo, que emolduram dentes muito brancos. Possui dois braços curtos e carrega uma só perna. Com ela, é capaz de pular nas costas de um cavalo e corre veloz como um veado.
Algumas características físicas do Saci, no entanto, são pouco claras e nem sempre presentes. Uma delas é a mão furada, por onde é possível passar uma moeda. A sua altura não passaria de três palmos, mas há relatos em que ele teria chegado a três varas de altura, como se pude aumentar e diminuir de tamanho a seu bel prazer.
Ágil e astuto, o Saci anuncia‑se com um assobio persistente e misterioso, não localizável e assombrador. Esse som é semelhante ao da ave saci, que, por essa razão, parece ter emprestado seu nome à criatura.
O Saci adora pregar peças e fazer pequenas maldades e travessuras. Sua maior diversão é criar dificuldades domésticas, espantar o gado, assustar os viajantes e fazer desaparecer seus pertences.
O Saci adora fumo, e não seria difícil para ele aliviar o viajante dessa carga. Mas ele apreciará sinceramente qualquer iniciativa de oferecer-lhe fumo, concedendo em troca um pequeno favor.
A criatura pode assumir a forma de um pequeno rodamoinho de vento, desaparecer em uma nuvem de fumaça ou ficar invisível. O Saci arma os redemoinhos com as folhas voando ao redor da única perna girando. Nesse momento, é fácil apanhá-lo. Bastaria lançar uma peneira sobre o núcleo central do redemoinho.
Uma vez capturado, a pessoa deve retirar-lhe imediatamente a carapuça, pois ela é encantada, o foco de seu poder. Para recuperá-la, o Saci é capaz de prometer qualquer coisa. Sua primeira tentativa será oferecer uma fortuna a seu captor. Mas o dinheiro dado pelo Saci precisa ser benzido, sob pena de desaparecer ou transformar-se em folhas secas no dia seguinte.
Considerações adicionais: todos os relatos colhidos sobre essa criatura fantástica devem-se aos colonos. Os nativos ignora por completo a existência do Saci. Os negros, não importa a origem e a condição, não o reconhecem e ignoram sua procedência. Os colonos, muito menos. O Saci, então, revela-se uma criatura misteriosa a todos os povos, de origem desconhecida, de natureza imprecisa e objetivos insondáveis.
DAS RAÇAS MONSTRUOSAS
Igupiaras
Habitat: Pode ser encontrado nas barras dos rios, por toda a Província de Santa Cruz.
Os Igupiaras são seres marinhos que residem no fundo das águas. Misteriosos, parecem homens de boa estatura, um tanto deformados, com olhos muito encovados, andar incomum, um pouco desconjuntado. Possuem pelos pelo corpo e cerca de quinze palmos de altura, e o focinho com sedas muito grandes como bigode. As fêmeas parecem mulheres de cabelos compridos e sugestivamente formosas.
Os nativos os consideram inimigos dos pescadores, e morrem de medo deles. Quando atacam, são bestiais, famintos, de ferocidade primitiva, virando as canoas dos pescadores. Abraçam a pessoa fortemente e parecem que a beijam, apertando-a consigo, deixando-a feita em pedaços por dentro. Por fora, entretanto, parecem inteiras. Sentindo a vítima sem vida, soltam um forte gemido e fogem. Quando levam algum corpo, comem apenas os olhos, narizes, pontas dos dedos dos pés e das mãos, bem como as genitálias. E assim o corpo é encontrado na praia.
O Ipupiara não pede, não ameaça, não negocia. Ele simplesmente ataca ao sair da água, sempre para matar. E essa parece ser a sua única fraqueza, a sua ligação com a água, longe da qual não parecem resistir por tempo prolongado. Sua força, contudo, é sobre-humana.
Considerações adicionais: um Igupiara isolado dificilmente representará alguma ameaça, a não ser que a pessoa esteja sozinha. O fato de poder ser muitos deve ser explorado. Fora da água, é um ser lento.
Negros d’Água
Habitat: Podem ser encontrados nos rios e lagos na região dos rios da Prata e Paranaíba. Há relatos de terem sido avistados também no rio São Francisco.
Os Negros d’Água são criaturas fantásticas que exercem domínio sobre as águas e sobre os peixes. São inteiramente negros e calvos, baixos, com membranas entre os dedos e apenas um olho no centro da testa. Andam sempre em grupo. Atacam virando as canoas e afogando seus tripulantes, para depois devorá-los.
Essa estranha raça aparece à tardinha ou em noites de luar junto às margens dos rios, entre as pedras. Eles põem a cabeça de fora e soltam uma risada que não acaba mais. Seus dentes são aguçados como ferrão e brancos como leite.
Não são excepcionalmente fortes e tampouco se afastam para além da margem, mas estão sempre em bando e levam uma boa vantagem quando lutam dentro d’água.
Considerações adicionais: a principal ameaça do Negro d’Água é o fato de agir em bando. Como seus ataques são mais efetivos dentro d’água, há pouca utilidade se o grupo se mantiver fora dela. Podem se tornar um grande obstáculo se o rio precisar ser transposto.
*Compilação extraída do bestiário de Padre Maurício.