TRINOS ESPECIAIS*

DAS TRIBOS FABULOSAS

Para além dos limites conhecidos da Província de Santa Cruz, em terras ainda não dominadas por Lusitanos ou Castelhanos, há relatos da existência de tribos fantásticas, com atributos inumanos. Algumas delas teriam sido confrontadas por bandeiras errantes, como aquelas que viajaram para além das terras dos Akroás, no coração da Terra de Santa Cruz. Outras se tornaram conhecidas pelas vozes dos nativos que habitam tais regiões, como os Guayanás de La Piñería. Desnecessário dizer que essas fabulosas criaturas povoam mais os pesadelos dos nativos, enquanto para os colonos são ainda apenas histórias a serem contadas em volta da fogueira.

Cupendiepes

Região: habitam cavernas em uma serra escarpada muito além da terra dos Akroás, vagamente localizada “após a terra vermelha”.

Os Cupendiepes são uma tribo de asas de morcego, muito temida pelos nativos da região. Eles atacam as aldeias próximas, sempre durante a noite, dando voos rasantes, usando lanças ou machados para degolar seus oponentes.

De forma semicircular, esses machados foram chamados de “machados de lua”. Muitos nativos também o possuem, pois os tomaram para si nos diversos embates contra os Cupendiepes.

Considerações adicionais: segundo os bandeirantes que enfrentaram tais criaturas, não há como enfrentá-los durante a noite. A melhor forma é identificar a caverna onde estão e invadi-la durante o dia, enquanto dormem.

Cupendogális

Região: habitam as mesmas serras que os Cupendiepes, mas na base das montanhas.

Os Cupendogális são mais uma tribo notívago das terras desconhecidas de Santa Cruz. Trata-se de um povo pigmeu, albino, canibal, e que não enxerga à luz do dia. Durante o dia, dormem em cavernas, pois não suportam a luz do sol.

Para eles, qualquer ser vivo que se movimenta durante a noite é caça. Atacam como qualquer tribo de Santa Cruz: em grupo, coordenadamente, portando tacapes, porretes, lanças ou arco e flecha.

Considerações adicionais: se são sensíveis à luz solar, é possível que também evitem outras fontes luminosas, como tochas e fogueiras.

Curinqueãs

Região: tribo avistada ao sul da Grande Floresta.

Os Curinqueãs são uma tribo de homens gigantes, medindo cerca de 16 palmos de altura, rosto largo com os beiços e narizes adornados de pedaços de ouro. Seu número é bastante reduzido, mas os demais nativos parecem respeitá-los e temê-los.

Pouco se sabe sobre sua natureza e hábitos. Sequer histórias de contato direto com os colonos, exceto o registro feito pelo reitor do Colégio da Companhia de Jesus da capital, o saudoso Padre Simão.

Considerações adicionais: tratando-se das matas de Santa Cruz, a escassez de noticias e falta de encontros costuma significar uma postura de neutralidade. Tribos mais guerreiras costumam deixar os vizinhos mais agitadas e fomentar guerras entre eles.

Curutons

Região: cavernas profundas das terras dos Guayanás.

Segundo os Guayanás, na época do grande dilúvio, quando as almas dos seus ancestrais estavam recolhidas no centro da terra, estas possuíam para servir-lhes uma uma espécie nativa de servidores, os Curutons, os “sem roupas”. Quando as águas baixaram, os irmãos Kaiurukré e Kamé abriram veredas no centro da terra para que sua gente pudesse voltar à superfície, saindo em duas grutas nas montanhas negras de La Piñería, conhecidas como Krinxy.  Os Curutons ficaram para trás a fim de trazer os utensílios deixados nas cavernas. Por revolta ou preguiça, os Curutons jamais deixaram as cavernas. E ainda estão por lá, preocupados em não se deixarem ver, sendo bastante hostis em relação a seus antigos algozes.

Os Curuton, por viverem nas profundezas da terra, são franzinos e de pele clara. Adaptados à escuridão, são sensíveis a luzes mais intensas que a de uma tocha. Nunca saem para a superfície e não gostam de visitantes.

O Monte Krinxy fica na Serra de Paranapiacaba, que os Guayaná chamam de Krinjijimbe, na vertente voltada para o interior.

Considerações adicionais: não é qualquer caverna que leva até os Curutons, pois eles habitam regiões bem profundas. Tampouco é conhecida a extensão dessas cavernas, que podem se conectar com outras por todo o continente.

Goyazis

Região: há relatos de note a sul da Grande Floresta que parecem se referir à mesma tribo.

Os Goyazis seriam uma tribo de anões de estatura extremamente pequena, do tamanho de uma criança de colo. Sua história se confunde com relatos sobre duendes da floresta, de forma que fica difícil estabelecer quais seriam suas características. De certa, só a sua completa ausência em terras colonizadas.

Apesar do tamanho diminuto, apresentam força desproporcional ao tamanho e se movimentam com grande facilidade por entre os arbustos. Se utilizam algum tipo de armamento, é desconhecido.

Considerações adicionais: serão perigosos, hostis, ou apenas desconfiados? Os nativos os tratam como seres encantados. Nem bons, nem maus, apenas mais um incômodo.

DAS TRIBOS DE MULHERES

De norte a sul da Terra de Santa Cruz ouve-se falar de aleias formadas apenas por mulheres. Nem todas as tribos, é bem verdade. Ainda assim, não é uma ocorrência incomum. Entretanto, Frei Carvajal exagerou na licença poética ao chamar um grupo de mulheres guerreiras de Amazonas. A começar pelo fato que nenhuma delas monta cavalos.

Icamiabas

Até onde foi possível apurar, no alto de um dos afluentes norte do rio Solimões, existe a serra conhecida pelos nativos como Icamiaba. A partir dela, uma guerreira conhecida como Conhori, no início do século passado, iniciou um pequeno império de mulheres que se espalhou por dezenas de aldeias de pedra ao longo de um rio conhecido como Conuris. Devido ao local, são conhecidas como Icamiabas.

Pela descrição dessas aldeias, a etnia de Conhori está mais para os nativos das cordilheiras do que para os Tupis. As casas possuem portas e aldeias são interligadas por estradas amparadas com cercas, exigindo pedágio a quem passar por elas. Tinham, na época de Carvajal, muito ouro e muita prata.

Na aldeia principal há cinco casas grandes, com templos dedicados ao sol, chamados Caranai. Tem assoalho no solo e os tetos forrados de pinturas coloridas. Os ídolos de ouro e prata são figuras femininas. As sacerdotisas vetem mantas de lã do peito, mantendo o peito descoberto.

São mulheres sem marido. Quando sentem desejo, fazem guerra e capturam escravos para procriar. Dos filhos nascidos, só sobrevivem as meninas. Às vezes, o menino é levado pelo pai, quando consideram este merecedor de tal honra.

Aqueles que não são capturados para esse fim, quando não morrem em combate, são pendurados pelas pernas e servem de tiro ao alvo para as flecheiras. Não são canibalizadas, mas queimados até virarem cinzas.

As Icamiabas são descritas como altas e de pele mais clara. Andam nuas, com arcos e flechas na mão. Muito fortes, uma valia por dez guerreiros nativos. Socialmente, possuem distinção entre fidalgas e plebeias.

Considerações adicionais: muitos aventureiros, após a publicação da história de Frei Carvajal, tentaram, sem sucesso, encontrar as cidades das Icamiabas.

Amossenes

Ulrich Schmidl, um mercenário germano que explorou o rio da Prata em meados do século passado, influenciado pelos relatos das “amazonas” de Carvajal, chamou de Amossenes o grupo de mulheres guerreiras que viviam na região ao norte de onde foi erguido o Forte Albuquerque.

Ao contrário das Icamiabas, esse grupo não se tratava propriamente de mulheres sem maridos. Elas se juntavam com eles três ou quatro vezes por ano. Eram guerreiras, hábeis no manejo do arco, e criavam as filhas numa grande ilha da região, apartadas dos homens. Os homens moravam em terra firme, guardando o ouro que era delas, em uma estranha sociedade.

Considerações adicionais: esses nativos, ao que tudo indica, são os Guatós, tribo que permanece isolada, não só dos colonos, mas também dos demais nativos da região. Reencontrar a tribo relatada por Schmidl é como um raio cair pela segunda vez no mesmo lugar.

Cupêndias

Os nativos que vivem no coração da Terra de Santa Cruz, e que precisam enfrentar os Cupendiepes e Cupendogális, também se veem às voltas com as Cupêndias.

Pouco se sabe desses nativos além do que foi relatado por bandeirantes que cruzaram a região. Há a possibilidade de que sejam aparentados com os Timbiras da Província do Grão-Pará.

As Cupêndias são as mulheres dessa tribo que vivem juntas na floresta, formando uma aldeia próxima ao rio Arauay, providencialmente do lado oposto ao da serra dos Cupendiepes.

As Cupêndias não hostilizam os homens que as visitam, nem guerreiam com seus vizinhos. Se o visitante vier em paz,  será bem recebido e bem tratado, e até mesmo poderá dormir entre elas. Contudo, se demonstrar desejo de se casar com uma cupêndia, deverá vencê-la na corrida. Para as Cupêndias, um mau corredor pode fazer o casal ser pego pelo inimigo. Geralmente retornam solteiros para suas aldeias.

As Cupêndias, além de muito bem treinadas na corrida, comem só ao meio-dia. São exímias cultivadoras de algodão, mandioca, arroz e outras plantas.

Considerações adicionais: pelos detalhes dos relatos sobre essa região localizada entre os rios Arauay e Tukanatim, é possível imaginarmos o quão emocionante foi a passagem de nossos bandeirantes pela região. Os quais, como sabemos, não se fizeram conhecidos por sua velocidade.

Coniapayaras

Entre os Tupis, as mulheres senhoras de si, soberanas, que vivem sem seus maridos, são conhecidas por Coniapayaras. Procuram os homens apenas para procriação ou por necessidade de aliança contra um inimigo em comum.

As mulheres tupis possuem uma característica particular no que diz respeito ao ritual de rachar a cabeça: elas não o praticam. Sua participação se limita a comer a carne, da mesma forma que o Caraíba. Não se trata de uma restrição, mas de um reconhecimento de superioridade.

As Tupis são consideradas seres perfeitos, detentoras do dom da vida. Elas não necessitam mostrar seu valor em combate para alcançar a Terra Sem Mal. Só serão privadas disso caso sejam adúlteras ou induzam seus maridos a nomearem um filho que não o pertença.

Como na cultura tupi é o homem quem nomeia o filho, mesmo as mulheres sem marido não ousam desrespeitar as tradições, temendo perdendo o direito de adentrar o Paraíso tupi. Jamais entregam ao pai um filho que não é dele, e só o liberam após ele nomear a filha. Por outro lado, não precisam se preocupar com o adultério.

Considerações adicionais: as Coniapayaras podem ser encontradas em qualquer região habitada pelos Tupis. Não parece se tratar de uma aldeia organizada, mas de um grupo de mulheres, de tamanho variado, que decide se juntar para viverem de uma forma mais livre, possivelmente nômades.

DO ELO PERDIDO

“Sumé já caminhava por estas terras quando os Guajáras aqui estavam.” Quando o caraí dos Tavyterã mencionou esse nome pela primeira e única vez, não pensei de imediato ter topado com um grande mistério. Perambular pela Terra de Santa Cruz é descobrir um novo nome a cada dia. Um animal, uma tribo, um monte, um espírito, uma criatura. “Guajáras” seria apenas mais um de uma longa lista da qual só um punhado vira anotação. De fato, este nome não viraria uma anotação, mas uma obsessão. E isso aconteceu no exato momento em que o caraí simplesmente ignorou minha pergunta: “Guajáras? Quem são esses?”

Todos os meus contatos, entre os Jesuítas e os nativos, ninguém parecia ter ouvido falar desse nome. Alguns pajés paravam por um segundo e pareciam reconhecer o nome, mas logo afastavam seus pensamentos como quem dispersa a fumaça de tabaco. Já estava convencido de estar perseguindo as palavras de um velho inebriado pelo cauim quando tive a minha quota de aventura no vale dos Acritós. Um de seus xamãs era bem diferente do resto da tribo. Parecia ser um tupinambá ou telikong adotado. Ao pergunta-lo sobre “uns tais Guajáras”, ele me olhou pesadamente e disse sem rodeios que, se eu tinha alguma esperança de sair vivo daquele vale, era melhor não repetir aquela palavra perto de um acritó.

Três anos após daquela noite com o caraí, retornei às terras dos Tavyterã. Dessa vez, passei uma temporada no Forte Albuquerque, quando conheci melhor o capitão Ruy Garcia, que demonstrou ter um conhecimento acima do normal sobre a Terra de Santa Cruz e seus mistérios. Então, como nada tinha a perder, perguntei: “o capitão já ouviu falar dos Guajáras?”

Ele ficou calado, examinando-me com um demorado olhar enquanto as baforadas de fumo deixavam seu semblante quase desaparecer por trás da névoa que se misturava à neblina. E, depois de alguns goles de um inesquecível vinho lusitano, começou a falar. E muito.

O capitão contou sobre uma aventura de barco pelos rios do Prata, quando foi surpreendido por uma enxurrada e sobrevivido por milagre. Ao despertar, viu que se encontrava aos cuidados de um nativo de rosto sereno, idade indefinida, gestos precisos e olhar confiante. Ministrava-lhe um eficiente tratamento com ervas. Garcia perguntou-lhe se falava a língua dos Guaranis, embora não se parecesse com um. E, para a sua surpresa, respondeu-lhe fluentemente naquela língua.

Garcia recuperou-se logo e o nativo dispôs-se a guia-lo até as proximidades de uma missão jesuítica. Porém, no meio do caminho, foram cercados pelos Charruas. O seu companheiro de imediato ergueu os braços e começou a falar em outra língua, que logo se mostrou ser a mesma dos Charruas. Garcia desconhecia o idioma para saber o que diziam, mas uma palavra logo lhe chamou a atenção, da forma como era repetida pelos guerreiros: “guajára”.

O nativo então se despediu do capitão e disse que aquele grupo se encarregaria de leva-lo a salvo até a missão, que não havia nada que ele precisasse temer. Claro que isso não foi o suficiente para aplacar seu temor de perder a cabeça, mesmo sabendo que os Charruas não eram adeptos do canibalismo.

Mas, de fato, ao longo da jornada, foi tratado com extrema cordialidade. A situação só mudou quando, já próximos das missões, encontraram-se com um grupo de batedores Tapes. A tensão era palpável e a batalha, iminente. Então bastou um dos Charruas apontar para Garcia e dizer “guajára”. E os Tapes imediatamente mudaram de atitude. E mais uma vez a escolta da capitão mudou, e os Tapes o levaram até a missão de São Francisco de Borja.

Curioso com o termo, indagou aos dois jesuítas responsáveis pela missão sobre a palavra, mas eles nunca tinham ouvido falar dela. Decidiu buscar algum pajé entre os guaranis que ainda viviam na mata, mas, assim como a mim, nada disseram. Porém, perspicaz, Garcia notou o assombro no olhar de um pajé por, possivelmente, ouvir tal palavra da boca de um homem branco. E foi nesse momento que teve uma ideia: se este era um segredo guardado pelos nativos, não é algo que ele descobriria junto aos amigos, mas com os inimigos. Tratou, então, a procurar algum feiticeiro que vivesse escondido nas serras dos Tapes. E não demorou a encontrar um, um antigo pajé que se voltou contra os seus por se recusar a fazer aliança com os Castelhanos.

Garcia não entrou nos pormenores de como conseguiu se aproximar de um feiticeiro que se declarava inimigo dos colonos, mas tão interessado em ouvir revelações sobre os Guajáras que só me dei conta disso mais tarde. Diante da indagação de Garcia, o feiticeiro sorriu maliciosamente e sugeriu que ele procurasse uma gruta na Serra dos Tapes, em um labirinto de cânions próximo à costa. Intrigado, o capitão partiu para o local, mas nunca conseguiu chegar lá. Encontrou tantos obstáculos pelo caminho que achou impossível tratar-se de uma coincidência.

“A curiosidade matou um gato”, disse. “E este, já escaldado, preferiu retomar seus afazeres em Cananeia.”

Essa menção distraída de Cananeia abriu a porta para mais um mistério, sobre o qual vim a me debruçar anos mais tarde. Na capital da província, em Piratininga ou em São Sebastião, ninguém jamais havia ouvido falar do comandante do Forte Albuquerque.

Sobre os Guajáras, resolvi seguir a dica de Garcia: buscar aqueles que não são aliados. Para minha frustração, o resultado não foi muito diferente. No entanto, após dez anos de pesquisa, reuni algumas pontas soltas que, se tiverem nos Guajáras uma explicação em comum, podemos estar diante de um elo perdido a respeito dos mistérios que cercam este novo mundo.

A começar pelo templo tabu avistado no vale dos Acritós; as carrancas da Serra da Lua, onde os Yorubás ergueram os seus quilombos; as pinturas encontradas em várias lapas da região mineira e no sul da província; os entalhe de Itacoatiara, a 15 léguas da Cidade de Nossa Senhora das Neves; os Peabirus, tão engenhosamente traçados, cuja origem escapa aos anciãos da terra; e a convicção dos caraís, ao contrário dos caraíbas dos Tupis, da existência física da Terra Sem Mal.

Que outros mistérios poderia encontrar viajando por todo o continente? Certamente seria preciso duas vidas, pois só este pedaço de chão que mal ocupamos, mesmo dedicando metade da minha a explorá-lo, sinto-me apenas arranhando a superfície.

Considerações adicionais: se tais conjecturas se mostrarem verdadeiras e não fruto de uma obsessão delirante provocada por uma vida inteira enfiado nas profundezas verdes de Santa Cruz, isso será ao mesmo tempo fantástico e aterrador. Ao atravessarmos o Mar Oceano, no que foi que viemos nos meter?

*Compilação extraída do bestiário de Padre Maurício.

Published in: on 11 de janeiro de 2019 at 12:15  Deixe um comentário